UNS DOS CRIADORES DOS ACORDES DA BOSSA NOVA.
Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, quase esquecido pelo público, é uma
espécie de músico para músicos. João Gilberto é entusiasta da arte do
compositor de “Gente humilde” ligar “os acordes por meio de belas frases
musicais”. O poderoso chefão da bossa nova disse: “Garoto é um camarada
esperto, ele sabe fazer aqueles encadeamentos, ele acompanha de uma forma
que fica mais bonita”. Em 1991, incluiu num CD a música “Sorriu para
mim”, de Garoto e Luís Cláudio (pseudônimo de Cecy, sua mulher). No
livro “Chega de Saudade — A História e as Histórias da Bossa Nova”
(Companhia das Letras, 461 páginas), Ruy Castro escreve: “Não havia um
instrumento de corda que ele [Garoto] não dominasse à primeira vista.
Dizia-se que, numa única canção, Garoto era capaz de alternar violão,
guitarra, violão-tenor e cavaquinho, passando de um para o outro sem
perder um compasso — e esta não era uma daqueles lendas que os músicos
gostam de contar, porque ele costumava fazer isto no auditório da Rádio
Nacional”. Depois de chamá-lo de “superviolonista”, o jornalista e
crítico acrescenta, citando a cantora Sylvinha Telles, uma das primeiras
vozes da bossa nova: “Cantar com Garoto era o máximo que uma pessoa
podia querer”. Na esplêndida biografia “Carmen” (Companhia das Letras,
632 páginas), sobre a cantora Carmen Miranda, Ruy Castro aumenta o
encantamento: “Aos poucos jornalistas que o procuraram, Aloysio [de
Oliveira] disse que o Bando da Lua também vencera na América e que
Garoto impressionara os americanos, que o chamavam de ‘Mr. Marvelous
Hands’”. No livro “A Canção no Tempo — 85 Anos de Músicas Brasileiras”
(Editora 34), Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello comentam: “Garoto
tinha uma concepção musical diferente, acima da média de seus
contemporâneos, bastando esta melodia [“Duas Contas”], com seus saltos
inusitados, para comprovar este ponto de vista”. Com tantas referências
positivas, de críticos e historiadores da música qualificados,
compreende-se a necessidade de uma biografia detalhada do músico que
mesmerizou Vinicius de Morais, Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque e
Baden Powell. A biografia está nas livrarias: “Gente Humilde — Vida e
Música de Garoto” (Edições Sesc SP, 270 páginas), de Jorge Mello. Não há
biografias definitivas, porque cada época reinventa os artistas, e o
trabalho do professor de Física, apesar de sua enorme importância,
procurando fornecer os dados principais de maneira cuidadosa, é apenas o
primeiro passo. Não se trata da biografia clássica, detalhada, como as
excelentes “Nelson Rodrigues — O Anjo Pornográfico”, de Ruy Castro, e
“Chatô — O Rei do Brasil”, de Fernando Morais. Ainda assim, resgata a
história de Garoto, inclusive publica seus diários.
Garoto
nasceu em 1915, em São Paulo, e morreu de infarto, em 1955, aos 39 anos.
Aos 5 anos tocava o violão do irmão Batista. Logo depois, ainda menor,
já tocava violão, flauta, sax, bandolim, bandola, guitarra portuguesa,
cavaquinho, violino e banjo. Era conhecido como Moleque do Banjo. Tomou
aulas de violão com o professor Quinzinho e de violino com Arthur Busin.
Tocava no violino “Piquenique trágico”, de Germano Benencase, e “Ave
Maria” (não se sabe de qual compositor). Na escola, pensando mais em
música, era desatento. Na aula de religião, o professor perguntou: “Sr.
Aníbal Augusto Sardinha, qual foi o homem extraordinariamente dotado que
Deus enviou à terra?” Distraído, mas talvez nem tanto, Garoto respondeu
na bucha: “Foi Ernesto Nazareth!” O mestre gritou: “Sacrilégio! Como
ousa misturar o nome de Cristo com nomes profanos? Quem é Ernesto
Nazareth?” O menino respondeu: “É um compositor de choros”. O professor
admoestou-o: “E por acaso falei em compositor de choros?” (o professor
havia citado Jesus de Nazaré, daí a confusão). O jovenzinho não se fez
de rogado: “Mas o sr. não falou num homem extraordinariamente dotado?” O
lente não entendeu que estava lidando com um músico nato.
Menino, Garoto tocava ao lado do irmão Batista na Jazz Band Universal,
no Circo Queirolo. Tocava banjo e, com outros grupos, cavaquinho. Aos 13
anos, o Moleque do Banjo tocava com Canhoto e, entre outros, Zezinho do
Banjo, que, como Joe Carioca, “emprestou sua voz ao papagaio Zé
Carioca, criação de Walt Disney, e fez sucesso nos Estados Unidos”. Aos
15 anos, em 1930, Garoto lança seu primeiro disco, com “duas composições
de sua autoria: ‘Bichinho de queijo’ (maxixe) e ‘Driblando’
(maxixe-choro)”. Toca banjo e assina-se Aníbal Cruz. No mesmo ano, toca
cavaquinho no grupo Chorões Sertanejos e apresenta-se na Rádio Sociedade
Record, tocando banjo, bandolim e cavaquinho, como integrante do
conjunto regional da emissora, e, às vezes, atuava como solista.
Em 1931, contratado pela Rádio Educadora, Garoto passa a usar o violão
tenor — “semelhante ao violão mas um pouco menor e com apenas quatro
cordas, em vez de seis. Garoto atribuiu a si o batismo do instrumento:
‘O violão tenor foi lançado por mim no Brasil em 1933. Com este
maravilhoso instrumento tomei parte em programas radiofônicos, teatros.
Este instrumento é de origem americana, onde é conhecido pelo nome de
triolin [ou triolian]. No Brasil, batizei-o de violão tenor’”. O músico e
pesquisador Marcio Petracco contesta e diz que, “em 1920, o violão
tenor já era denominado tenor guitar. Garoto teria feito apenas uma
tradução”. Garoto também era expert com guitarra havaiana e tocava
ukelele. A valsa “Desvairada”, tida como “uma das mais famosas
composições de Garoto, foi apresentada”, numa rádio, “primeiro em solo
de cavaquinho e, alguns dias depois, em solo de bandolim”.
Em
1932, Garoto “fez suas primeiras apresentações como solista de violão” e
já recebia o maior salário da Rádio Educadora. Era integrante da Jazz
Band Otto Wey e do Sexteto Bertorino Alma e apreciava tocar músicas de
Ernesto Nazareth. Em 1935, fazia sucesso, era citado como
“extraordinário solista de oito instrumentos” e participou do filme
“Fazendo Fitas”, de Vittorio Capellaro. Jorge Mello contesta um mito:
Garoto e o violonista Aimoré não tocaram com Carlos Gardel e nem viram
Django Reinhardt tocar em Paris. Mas é fato que Garoto sofreu influência
musical de Reinhardt.
Em 1936, Garoto foi escalado para tocar,
em São Paulo, com Sílvio Caldas, Nonô, Luís Barbosa e Aracy de Almeida.
“No meio do ensaio, Sílvio Caldas viu Garoto com ‘vários instrumentos’ e
perguntou: ‘Será que ele toca tudo isso mesmo’.” O estupefato cantor
viu e ouviu o jovem músico tocar cavaquinho, bandolim e guitarra
havaiana — sem desafinar. “A cada instrumento, Sílvio tentava impedi-lo:
‘Não toque, pode ficar mal para você’. Furioso, Garoto pegou o violão
tenor, impondo-se por seu talento. Os artistas cariocas ficaram
maravilhados.”
Respeitado por músicos e cantores, Garoto
cresceu e gravou vários discos como solista. Pela Columbia, gravou o
choro “Dolente” e a valsa “Moreninha”, ambos de sua autoria. Na Rádio
Cruzeiro do Sul, conta Jorge Mello, Garoto e Aimoré “tocaram um duo de
forma inovadora: o violão a quatro mãos. Usando um único violão, Garoto
tocava na região mais aguda e Aimoré tocava na mais grave”.
Garoto gravou nove discos, inclusive músicas de carnaval, com Moreira da
Silva — ganhando “ginga e malemolência”. O choro “Vamos acabar com o
baile” teria recebido influência do rei do breque, assinala Jorge Mello.
Garoto-o compositor começou a ser gravado por alguns artistas. Arnaldo
Meireles, acordeonista, gravou a valsa “Suspirando” e a mazurca
“Saudades daqueles tempos”.
Em 1938, na Rádio Mayrink Veiga,
Garoto integra o conjunto Cordas Quentes, ao lado do violonista Laurindo
Almeida. O músico acompanhou Sílvio Caldas na gravação de três discos.
Ele e Laurindo acompanharam Carmen Miranda na gravação de dois sambas.
Os dois músicos gravaram músicas de Ary Barroso.
Ao mudar-se
para os Estados Unidos, Carmen Miranda convocou o músico: “Queridíssimo
Garoto, espero que você tenha gostado da ideia de vir para cá e
aceite-a, pois esta terra é a melhor do mundo, só estando aqui é que
acreditará. Estamos ansiosos que você venha”.
Nos Estados
Unidos, Garoto gravou, com Carmen Miranda e o Bando da Lua, três discos,
pela Decca. “O primeiro com as músicas South American Way (Al Dubin e
Jimmy Mchugh) e ‘Touradas em Madri’, de João de Barros e Alberto
Ribeiro; o segundo com ‘O que é que a baiana tem?’ (Dorival Caymmi) e a
marchinha ‘Co, Co, Co, Co, Co, Co, Ro’ (Lamartine Babo e Paulo Barbosa);
e o terceiro com a marchinha ‘Mamãe, eu quero’ (Jararaca e Vicente de
Paiva) e o samba-embolada ‘Bambu bambu’ (Patrício Teixeira e Donga)”,
relata Jorge Mello. “O grupo também atuou no cinema, na comédia musical
‘Dow Argentine Way’ [“Serenata Tropical”], filme de Irving Cummings, de
1940, estrelado por Don Ameche e Betty Grable.”
O presidente
Franklin D. Roosevelt ouviu Carmen Miranda, o Bando da Lua e Garoto, na
Casa Branca. “O presidente, muito camarada, veio nos abraçar, trocando
impressões sobre coisas brasileiras”, revelou Garoto. Mais: Duke
Ellington e Art Tatum ouviram Garoto tocar violão tenor. O organista
Jesse Crawford chamou-o de “o Homem dos Dedos de Ouro”. “Aquele rapaz de
25 anos assombrou as plateias norte-americanas por sua maneira tão
peculiar de tocar o instrumento.” Garoto amava a música de Ella
Fitzgerald e de Bing Crosby e as grandes orquestras estadunidenses.
Em 1940, Garoto grava o choro “Quanto dói uma saudade”, um dos mais
bonitos, e a valsa “Abismo de rosas” (confira uma gravação com Raphael
Rabello). Dois sambas de Garoto, “Compromisso para as dez” e
“Ingratidão”, foram gravados por Waldemar Reis. “Garoto ao violão e Poly
no cavaquinho participaram da gravação dos dois primeiros discos
daquele que viria a se tornar o ‘Rei do Baião’, Luiz Gonzaga. (...) Pela
RCA Victor, Garoto e a pianista Caronlina Cardoso de Menezes gravaram o
belíssimo choro de Garoto intitulado ‘Amoroso’, que mais tarde ganharia
letra de Luís Bittencourt.”
Em 1942, em plena Segunda Guerra
Mundial, o músico migra para a Rádio Nacional, onde faz o programa
“Garoto e seus Mil Instrumentos”. Trabalhou com o maestro Radamés
Gnattali, “inovou apresentando-se com uma guitarra havaiana elétrica” e,
em 1944, “passou a atuar em duo com a pianista Carolina Cardoso de
Menezes nas rádios Nacional e Guanabara. Deixava até os músicos
impressionados ao tocar violão, violão tenor, violão quinto (seis cordas
e afinações especiais), banjo, rajão (instrumento de origem lusa, de
cinco cordas, muito parecido com o cavaquinho), bandolim, violino,
bandola (oito cordas e somente sons graves), cavaquinho (de quatro e
cinco cordas), guitarra portuguesa, guitarra havaiana, bandolin-cello
(invenção de Garoto, com quatro cordas e sons graves, para música
lenta), violoncelo e contrabaixo”, registra Jorge Mello.
Obsessivo — dizia: “Ou o violão me mata ou eu mato ele” —, Garoto
estudava detidamente o “Quarteto” de Haydn, tocava Chopin, Segóvia,
Falla, Beethoven, Mendelssohn, Villa-Lobos, Ravel (“Bolero”) e era
mestre na interpretação de “Rhapsody in blue”, de George Gershwin.
Gravou com Dorival Caymmi, Orlando Silva e Ademilde Fonseca.
Paralelamente ao trabalho como multi-instrumentista, continuava compondo
músicas de qualidade, como o choro “Gracioso”, “Falsa Promessa”
(gravada por Emilinha Borba), “Duas Contas” (confira na voz de Maria
Bethânia). Diz a música: “Teus olhos/são duas contas pequeninas/qual
duas pedras preciosas/que brilham mais que o luar”. “Gente humilde”,
talvez sua música mais famosa, ganhou letras de um poeta mineiro, que
não quis se identificar, e de Chico Buarque e Vinicius de Moraes (mais
deste). Músicos são competitivos e Garoto fazia questão de, às vezes,
mostrar que era “superior” a Jacob do Bandolim.
Em 1952, aos 37
anos, Garoto era um músico completo, respeitado e, até onde é possível,
imitado. Com Fafá Lemos (violino e canto), Chiquinho (acordeom), Garoto
(violão) criou o bem-sucedido Trio Surdina, considerado o melhor trio
instrumental do ano seguinte. No Municipal, participou de um concerto
regido, com desagrado, por Eleazar de Carvalho. “Vejam só onde fui
chegar... hoje em dia eu rejo até violão”, lamentou o maestro. “Foi a
primeira vez naquele teatro que o violão atuou como instrumento solista,
tendo a acompanhá-lo uma orquestra”, escreve Jorge Mello.
Em
1953, no Rio de Janeiro, não se sabe se para agradar os brasileiros,
Andrés Segóvia disse que Garoto era o maior violonista do mundo.
Um dos maiores sucessos de Garoto é a música “São Paulo quatrocentão”,
composta com Chiquinho. O disco vendeu setecentas mil cópias. A música
também foi gravada pela cantora Hebe Camargo. Tido como
profissionalíssimo, Garoto compôs músicas para os filmes “Marujo por
acaso” e “Chico Viola não morreu”. O poema “Temas e variações”, de
Manuel Bandeira, serviu como base para composição homônima de Garoto. O
samba-canção foi feito em meia hora.
Jorge Mello afirma que a
geração musical que surgiu e desaguou na bossa nova era “fortemente
influenciada” por Garoto. Ele menciona Johnny Alf, João Donato, Dolores
Duran, Newton Mendonça, Tom Jobim e Dick Farney. Sylvia Telles, aos 19
anos, brilhava, acompanhada, nas reuniões musicais, por Garoto,
Chiquinho, Candinho, Billy Blanco, Tom Jobim, José Vasconcelos, Avena de
Castro, Trio da Noite, Dolores Duran e Radamés Gnattali. A jovem era fã
de Garoto. Sua primeira gravação tinha os sambas-canções “Amendoim
torradinho”, de Henrique Beltrão, e “Desejo”, de Garoto e José
Vasconcelos.
Em 1954, Garoto atuou com novos parceiros, Luiz
Eça e Tom Jobim. “Luiz Eça, que se tornaria um dos maiores músicos do
Brasil — pianista, compositor e arranjador, líder do Tamba Trio —,
afirmou que Garoto foi sua primeira grande influência na música popular
brasileira. Não por acaso, incluiu duas músicas de Garoto em seus dois
primeiros LPs: ‘Relógio da vovó’ e ‘Felicidade’”, relata Jorge Mello.
Estudante em Viena, ao fazer o exame final, Luiz Eça tocou a música
“Duas Contas”, de Garoto. Levou zero. Sua obrigação era executar uma
música erudita.
Garoto tocou com Tom Jobim no Clube do Cinema.
Nesse dia, “Garoto compôs uma música na hora e denominou-a ‘Noite
maravilhosa’”. Perguntaram a Jobim: “Tom, você incluiria Garoto entre os
pioneiros da bossa nova?” O criador de “Garota de Ipanema” respondeu:
“Incluiria, Garoto foi peça importante. Conheci muito o Garoto,
muitíssimo. Gravei muito com o Garoto ao violão. Era considerado o maior
violonista brasileiro, foi aos Estados Unidos. (...) Gosto muito das
coisas dele”. Tom Jobim homenageou-o com a canção “Garoto”. Luís Bonfá
dedicou-lhe “Garoto”. O crítico e pesquisador Henrique Cazes sustenta
que Garoto “fez a ponte da harmonização jazzística para o violão
brasileiro”, portanto, antecipando-se à bossa nova. Raphael Rabello,
Turíbio Santos, Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Guilherme Vergueiro,
Carlos Malta e Paulo Bellinati executaram músicas do compositor.
Em 3 de maio de 1955, Garoto morreu, no Rio de Janeiro, quando estava
prestes a completar 40 anos. Teve um infarto. A biografia escrita por
Jorge Mello, embora lacunar, o que sugere a necessidade de uma pesquisa
mais ampla e de uma discussão mais detida da música de Garoto, é
imperdível. É um belo trabalho de resgate, uma história amorosa.
Publiquei um pálido retrato dos tesouros que escava e nos presenteia
(revela outras coisas, como o fato de Garoto ser espírita).
Aécio Oliveira
Nenhum comentário:
Postar um comentário